Tuesday, November 13, 2007

Um Jornalista que adorou a Ponta do Sol!


"Vinte minutos. É tudo quanto precisa para deixar para trás uma Madeira assoberbada de construções, a braços com uma série de equívocos turísticos, e chegar à pacata vila da Ponta do Sol, que dizem ser a mais ensolarada da ilha. Mas também uma das mais genuínas e com mais estilo, acrescentamos nós


Texto de João Miguel Simões/3P - Jornalista Revista "Rotas&Destinos"
Fotos de Henrique Seruca/B.C. Imagens



Guardo da Madeira as minhas primeiras memórias de viagem, amealhadas ainda durante a mais tenra infância. Desde então, adiei vezes sem conta o meu regresso, pelo que voltar ali, já homem feito e cansado de tanto ouvir falar no famigerado desenvolvimento urbanístico na Madeira, não foi fácil. Precisei de um aliciante de peso.

O motivo chama-se Estalagem da Ponta do Sol e faz parte de uma nova geração de projectos apostados em provar que a expansão da ilha não pode continuar assente exclusivamente num modelo de turismo de massas.


Ponte de betão armado e ferro que liga a casa antiga ao novo edifício de linhas minimais
Depois de uma aterragem sem sobressaltos, e de uma passagem rápida pelo Funchal, faço-me à estrada disposto a gozar a paisagem até à vila da Ponta do Sol, situada na costa sul da ilha, a escassos 25 quilómetros do centro da cidade. A viagem até Câmara de Lobos faz-se num piscar de olhos (entre as muitas coisas positivas que melhoraram a qualidade de vida dos ilhéus nos últimos anos, está, sem dúvida, o desenvolvimento da rede viária), o que não deixa de ser um fraco consolo ante o cenário desolador de uma construção desordenada, densa e feia (um denominador comum mesmo a muitos "giga-hotéis" e blocos de apartamentos no centro e periferia do Funchal).



Por alturas do Cabo Girão, o segundo promontório mais alto da Europa, a vista começa finalmente a ficar mais desafogada, mas resolvo iniciar, a partir dali mesmo, um desvio pelo interior, que me vai custar mais alguns quilómetros até ao meu destino final. Tomo então a direcção de S. Vicente/Serra d'Água e, quando atinjo a Encumeada, ganho novo alento com a visão de imponentes montanhas escarpadas, em cujos vales profundos se aninham vilas-presépio. Nem tudo está perdido, penso eu.

Continuo a subir até ao Paúl da Serra, a única planície da ilha, situado a 1500 metros de altitude, o que me permite pairar sobre um mar de nuvens. De novo na estrada, inicio a descida até à vila, passando por Canhas. É um percurso curto, traçado já ao final da tarde, mas Ponta do Sol, uma povoação cuja História está ligada aos engenhos de açúcar, não tem esse nome à toa e os últimos raios de luz do dia demoram-se um pouco mais sobre ela. Vim até ali atraído por um hotel, mas soube naquele preciso instante que tinha ganho algo mais como bónus: um lugar ao sol na Madeira.

Vai até onde te leva o teu olhar

É na Fonte do Risco que tem início um dos muitos trilhos possíveis para explorar o Rabaçal e a Floresta Laurissilva, Património da Humanidade
Uma coisa fica clara assim que desço até ao centro da vila, à beira-mar plantado. Não tivesse o Homem ludibriado os planos da Natureza e esta simpática vila teria permanecido apartada do resto da ilha pelas frondosas montanhas que a ladeiam e que fizeram com que o mar fosse, por muitos e bons anos, a forma mais rápida de quebrar o seu isolamento. Com as suas entranhas esventradas por dois túneis que alargaram os horizontes das gentes da vila, as montanhas não perderam a sua altivez, mas foram domadas, ao passo que o mar, de quando em vez, agiganta-se, galga os paredões rochosos e inunda a marginal, deixando atrás de si um rasto de espuma branca.




Sigo então para a Estalagem, por enquanto mais conhecida localmente como Quinta da Rochinha. O caminho até lá faz-se pela Lombada dos Esmeraldos, onde ainda existe uma casa solarenga que dizem ter acolhido Cristóvão Colombo, e passa pelo cemitério. Um percurso sinuoso mesmo até à ponta do esporão rochoso, onde desde há muito se encontra a casa da Quinta da Rochinha, a mesma que já serviu, em épocas distintas, feitores, juízes e até praticantes de ioga, mas que, neste novo milénio, foi integrada num arrojado projecto hoteleiro concebido pelo arquitecto Tiago Oliveira. A geografia mais do que acidentada do lugar em questão não facilitou a tarefa, até porque a ideia era conceber um complexo que, visto da vila, parecesse o mais integrado possível no promontório.


Ponta do Sol

Nasceu assim a Estalagem da Ponta do Sol, um lugar simples, informal e despretensioso que depressa se viu integrado na exigente cadeia dos Design Hotels graças às soluções engenhosas que encontrou para contornar as dificuldades (entre outras coisas, foi construído uma ponte de betão armado e ferro que liga, através de elevadores, a antiga casa a um nível superior do terreno onde ficam os 54 quartos, a piscina, o jardim e uma estrutura de apoio com salão de jogos, jacuzzi e bar panorâmico) e à aposta muito clara que vem fazendo na aquisição de obras de arte contemporânea de artistas como Vieira Pinto ou Calup e de peças de designers célebres como Philippe Starck, Carvalho Araújo, Charles & Ray Eames, Achille Castiglioni ou Piero Gatti.

Em resumo, uma estética simples, que tira todo o partido das paredes brancas e do chão em pedra negra ou em madeira clara para fazer sobressair o que realmente interessa: a paisagem. Por isso mesmo, dos quartos ao restaurante, as janelas envidraçadas vão do chão ao tecto, para que o olhar não tropece em obstáculos inúteis e possa andar à deriva entre o mar e a vila, num raio total que vai do Cabo Girão à Calheta.

Aproveito a localização privilegiada da Ponta do Sol, entre o mar e a serra, para continuar a dar largas ao meu ensejo de resgatar um pouco mais de uma outra Madeira.


O primeiro percurso é feito de carro, pela orla marítima, até ao Paúl do Mar, o que me obriga a seguir o traçado sinuoso da estrada e a atravessar, vezes sem conta, túneis profundos que trespassam a montanha de um lado ao outro. Para meu alívio, este passeio devolve-me a imagem de uma paisagem ainda rural, dominada por enormes plantações de bananeiras, mas com lugar para curiosidades como a capela manuelina do Loreto, em Arco da Calheta; a Capela dos Reis Magos (com um retábulo da escola flamenga de Antuérpia), no Estreito da Calheta; a visão repentina do casario branco da Madalena do Mar, que encadeia quem sai envolvido pelo negrume de mais um túnel; ou o colorido inesperado trazido por um punhado de surfistas estrangeiros à modesta povoação do Jardim do Mar. Por fim, o Paúl do Mar surge com um sabor a "mundo do fim do mundo", em parte devido à presença esmagadora de escarpas de violentas, de onde se precipitam grandes enxurradas no Inverno, que emparedam a povoação contra o mar, o mesmo que ruge como um trovão sempre que arrasta consigo toneladas e toneladas de seixos negros.


Depois do mar, o céu e a terra

Mirador da Encumeada

O meu segundo passeio, de aproximadamente sete quilómetros, começa em Paúl da Serra, de onde seguimos a pé para explorar o Rabaçal (o trilho mais frequentado, e que dura cerca de três horas, leva até ao lugar conhecido por Vinte e Cinco Fontes). A caminhada, com muitas descidas e subidas, faz-se quase sempre acompanhando os trilhos de manutenção das levadas (os canais de irrigação que transportam as águas abundantes das nascentes do Norte para o Sul da ilha, um sistema único que muitos gostariam de ver elevado à categoria de Património da Humanidade) e pode ou não ser feita com a ajuda de guias profissionais. Com pouca experiência na matéria, optei por recorrer a um guia profissional, que me iniciou nos segredos da floresta Laurissilva (esta sim, já Património da Humanidade), ajudando-me a identificar espécies endémicas como a Uveira da Serra e chamando a minha atenção para maravilhas como a Lagoa do Vento, cujas águas cristalinas são sacudidas por uma forte brisa (daí o nome), ou a Fonte do Risco, já próxima da Casa do Rabaçal e do fim do circuito. Este tipo de passeios exige alguma preparação física, mas que isso não sirva de impedimento para que um número cada vez maior de portugueses possa tomar contacto com este lado mais intocado da Madeira, apreciado pelos muitos estrangeiros (de todas as idades) que visitam a ilha.


Festa da Flor

Uma boa razão para ir ao Funchal
Como já deve ter reparado, o principal propósito deste roteiro é fazer com que descubra uma outra Madeira para lá dos clichés do Funchal, mas, e caso esteja a pensar visitar a ilha durante o fim-de- -semana de 13 e 14 de Abril, há um bom motivo para passar por lá: a realização da Festa da Flor. Trata-se de uma festa anual que se vale do clima raro do arquipélago, ideal para o desenvolvimento de uma autêntica reserva natural, que ocupa dois terços do território, para homenagear as tão amadas e afamadas flores. Regra geral, elas desabrocham espontaneamente durante todo o ano, mas como é na Primavera que tudo tem mais encanto, a cidade do Funchal consagra este fim-de-semana de Abril às orquídeas, às açucenas, às hidrângeas, às azáleas e a tantas outras que vão ser as estrelas maiores de um evento que tem como momentos altos a construção do Muro da Esperança - centenas de crianças depositam milhares de flores no Largo do Colégio - e o desfile de carros alegóricos - engalanados com flores, são eles que transportam belas jovens e crianças com trajes primaveris e lindas coroas de flores. Para além disso, decorrem ainda, paralelamente, espectáculos de música clássica, moderna e folclórica e a já tradicional exposição de flores no Ateneu Comercial do Funchal, onde os floricultores apresentam a concurso as suas mais belas criações.


O último raio de sol

Hotel da Baía do Sol

Tudo o que é bom acaba depressa e o meu tempo por ali está com as horas contadas. Em jeito de despedida, resolvo ir, uma vez mais, até ao centro da Ponta do Sol, junto ao mar. Dizem-me que o sossego do lugar - apenas quebrado no pino do Verão, altura em que o mar permite a instalação de passadeiras de madeira e a vinda de muitos banhistas, que mesmo assim não vem em número suficiente para provocar grande desassossego - tem ainda muito a ver com o facto de, nas últimas décadas, boa parte da população local ter emigrado ou mudado para outras povoações. Nota-se, no entanto, um renovado interesse nesta ponta ensolarada da ilha por parte de vários particulares (o gerente da Estalagem, André Diogo, fala-me inclusive de jovens casais bem sucedidos que estão a optar por construir ali as suas casas, aproveitando a proximidade do Funchal) e investidores, a que não é alheio o facto de esta vila se apresentar como uma das poucas que escapou à massificação.

E é então que, imbuídos por um novo espírito, aconselha a evitar os excessos do passado e a investir num tipo de turismo com mais qualidade e recato, que estão a surgir projectos como o hotel Baía do Sol, inaugurado a 3 de Dezembro de 2001, instalado num antigo armazém. A reabilitação da sua fachada de acordo com a arquitectura tradicional da vila foi fundamental para que a marginal ganhasse um novo viço, já que o edifício (com 71 quartos, piscina interior, bar, restaurante e um imenso terraço, todos decorados por uma firma local, a Esboço, que procurou recriar ali uma estética contemporânea) ocupa um espaço significativo e teve de disponibilizar uma esplanada a preços acessíveis, capaz de funcionar como ponto de encontro na vila para locais e forasteiros.

Até ver, e a julgar pelo número de pessoas que enche o terraço todos os dias, a aposta está bem encaminhada.

Mas as novidades não se ficam por aqui. A fazer fé no que me contaram, está também para breve a transformação da antiga prisão, um edifício histórico a poucos metros do hotel, em pensão de charme. A ser verdade, Ponta do Sol vai passar, em muito pouco tempo, a dispor de um hotel, de uma estalagem e de uma pensão. Muitas camas para um lugar tão pequeno? Talvez não se pensarmos que ali coexistem já vários escritórios de advogados, uma biblioteca municipal da Calouste Gulbenkian, uma igreja, um antigo cinema de 1933 e um museu municipal.

Perante tal cenário, resta torcer para que, agora que encontrei um lugar na Madeira onde me apetece voltar, esta vila não se converta rapidamente em mais uma daquelas desilusões que nos deixam um amargo de boca sempre que pensamos no que poderiam ter sido e não foram. É que Ponta do Sol vale mesmo a pena. Com ou sem sol."

in Revista " ROTAS&DESTINOS"

No comments: